sábado, 26 de setembro de 2009

O Fim das Certezas (Ilya Prigogine)


Se Einstein afirmou que o ‘tempo é ilusão’, como poderia a flecha do tempo emergir de um mundo que a física atribui uma simetria temporal? O paradoxo do tempo foi identificado no século XIX, pelo físico vienense Ludwig Boltzmann, em cuja tentativa teve como efeito por em equivalência a contradição entre as leis da física newtoniana, baseadas na equivalência e numa distinção essencial entre passado e futuro. Se as leis afirmavam a equivalência entre passado e futuro, toda tentativa de conferir uma significação fundamental à flecha do tempo aparecia como ameaça a esse ideal. A partir de Boltzmann houve um desenvolvimento espetacular da física do não-equilíbrio e da dinâmica dos sistemas dinâmicos instáveis associados à ideia de caos, que nos força a revisar a noção de tempo como foi formulada desde Galileu.

A física do não-equilíbrio estuda os processos dissipativos, caracterizados por um tempo unidirecional, o que confere nova significação à irreversibilidade. A irreversibilidade está na base de um sem-número de fenômenos como a formação de turbilhões, de oscilações químicas ou da radiação laser. Todos esses fenômenos ilustram o papel fundamental da constituição da flecha do tempo. A irreversibilidade é uma condição essencial de comportamentos coerentes em populações de bilhões de bilhões de moléculas. A tese de que a flecha do tempo é apenas subjetiva ou fenomenológica vai se tornando absurda, na medida em que somos seus filhos: sem a coerência dos processos irreversíveis de não-equilíbrio, o aparecimento da vida na Terra seria inconcebível. Através dos sistemas dinâmicos instáveis, reconhece-se a função primordial das flutuações e da instabilidade, associadas a essas noções aparecem as escolhas múltiplas e os horizontes de previsibilidade limitada. Os sistemas dinâmicos instáveis levam também a uma extensão da dinâmica clássica e da física quântica e, a partir daí, a uma formulação nova das leis fundamentais da física. Tanto na dinâmica clássica quanto na física quântica, as leis fundamentais exprimem agora possibilidades e não certezas. Temos leis, mas também eventos que não são dedutíveis das leis, que atualizam as suas possibilidades.

As leis enunciadas pela física não têm como objetivo negar o devir em nome do ser, elas visam a descrever mudanças, os movimentos caracterizados por uma velocidade que varia ao longo do tempo, no entanto, seu enunciado constitui um triunfo do ser sobre o devir. O exemplo por excelência da lei de Newton que liga a força à aceleração: se conhecemos as condições iniciais de um sistema submetido a essa lei, seu estado num instante qualquer, calcula-se todos os estados seguintes, bem como todos os estados precedentes. Sabe-se que a física newtoniana foi destronada no século XX pela mecânica quântica e pela relatividade, embora sobrevivam os traços fundamentais da lei de Newton (seu determinismo, sua simetria temporal). A mecânica quântica não descreve trajetórias, mas funções de onda, cuja equação de base, a de Schrödinger, também é de determinista e de tempo reversível. Representam-se as leis da natureza, então, uma vez que as condições iniciais são dadas, tudo será determinado. Mas a concepção de uma natureza passiva, submetida a leis deterministas é uma especificidade do Ocidente. Enfim, enquanto os processos reversíveis são descritos por equações de evolução invariantes à inversão do tempo, como a equação de Newton na dinâmica clássica e a de Schrödinger na mecânica quântica, os processos irreversíveis implicam uma quebra da simetria temporal.

A natureza apresenta-nos tanto processos irreversíveis quanto processos reversíveis, mas os primeiros são a regra e os segundos, exceção. Se a radiação solar é resultado de processos nucleares irreversíveis, nenhuma descrição da ecosfera seria possível sem os inúmeros processos irreversíveis que nela se desenrolam. Os processos reversíveis correspondem, em compensação, sempre a idealizações. A distinção entre processos reversíveis e irreversíveis foi introduzida na termodinâmica através do conceito de entropia, que Clausius, em 1865, estabeleceu que a entropia permaneça constante nos processos reversíveis, mas a entropia é produzida nos processos irreversíveis. O crescimento da entropia, pois designa a direção do futuro. Nas situações próximas do equilíbrio, o estado estacionário corresponde a um mínimo da produção de entropia. No equilíbrio, a produção de entropia é nula. Esta propriedade garante a regressão das flutuações. Longe do equilíbrio, a matéria adquire novas propriedades em que as flutuações, as instabilidades desempenham um papel essencial: a matéria torna-se mais ativa.

As reações químicas são, em geral, não lineares. Suponhamos uma reação em que [x] é um conjunto de dados iniciais, [y] um conjunto de produtos intermediários e [z] um conjunto de produtos finais. Para cada valor dado de [x] e de [y], existem muitas soluções possíveis para a concentração dos produtos intermediários de [z]. Dentre essas soluções, apenas uma corresponde ao estado de equilíbrio termodinâmico e à entropia máxima. Essa solução pode ser prolongada no domínio do não-equilíbrio. O resultado inesperado é, entretanto, que os estados estacionários se tornam, em geral, instáveis a partir de uma distância crítica do equilíbrio. Para além do primeiro ponto de bifurcação produz-se um conjunto de fenômenos novos, que podem ser reações químicas oscilantes, estruturas espaciais de não-equilíbrio, ondas químicas. Chama-se ‘estruturas dissipativas’ essas novas organizações espaço-temporais, que aumentam geralmente a entropia: o que se pode chamar de ‘auto-organização’, mesmo conhecendo o estado inicial do sistema, não podemos prever qual dos regimes de atividade ele irá escolher. Examinando de perto o efeito das flutuações, percebe-se que perto do equilíbrio elas são irrelevantes, ao passo que longe do equilíbrio desempenham papel central. As flutuações são essenciais nos pontos de bifurcação, se as suprimissem, o sistema se manteria estável. As bifurcações são, enfim, uma fonte de quebra de simetria, do espaço, do tempo ou do espaço e do tempo simultaneamente.

O universo é um sistema termodinâmico gigante, desde o começo mostra-se como um sistema longe do equilíbrio. Em todos os níveis, encontram-se instabilidades e bifurcações. Fala-se de ‘sensibilidade às condições iniciais’, tal como a ilustra a famosa parábola do ‘efeito borboleta’, fala-se com frequência em ‘caos determinista’, de fato, as equações caóticas são deterministas, como o são as leis de Newton, no entanto, elas geram comportamentos de aspecto aleatórios, porque as ‘leis do caos’ associadas a uma descrição regular e preditiva dos sistemas caóticos se situam no nível estatístico, ou seja, trata-se de uma formulação da dinâmica que não tem equivalentes em termos de trajetórias. Descrição não-local, onde a simetria em relação ao tempo é quebrada, pois o passado e o futuro desempenham papéis diferentes. Os fenômenos irreversíveis não param com a criação do universo. As reações nucleares continuam no interior do Sol, a vida continua na Terra. Os fenômenos irreversíveis devem achar sua explicação na física clássica ou quântica de hoje, ainda que seu ponto de partida seja cosmológico. Vincula-se a irreversibilidade a uma nova formulação, probabilista, da natureza. O futuro não é dado. Vivemos o fim das certezas.

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