domingo, 27 de setembro de 2009

Profanações (Giorgio Agamben)


Sancho Pança entra num cinema. Está procurando Dom Quixote e o encontra sentado isolado, fixando o telão. A sala está quase cheia; a galeria está totalmente ocupada por crianças barulhentas. Após algumas inúteis tentativas de chegar a Dom Quixote, Sancho senta-se de má vontade na platéia, ao lado de uma menina, Dulcinéia, que lhe oferece um lambe-lambe. A projeção começou: é um filme de época; sobre o telão correm cavaleiros armados, e num certo momento aparece uma mulher em perigo. De repente, Dom Quixote se ergue em pé, desembainha sua espada, se precipita contra o telão e os seus golpes começam a cortar o tecido. No telão aparecem ainda a mulher e os cavaleiros, mas o corte preto aberto pela espada de Dom Quixote se alarga cada vez mais, devorando as imagens. O público indignado abandona a sala, mas na galeria só as crianças encorajam fanaticamente Dom Quixote. Só a menina na plateia o fixa com reprovação – OS SEIS MINUTOS MAIS BELOS DA HISTÓRIA DO CINEMA.

Do final. Esta obra, publicada em 2004, reúne uma dezena de textos de formatos diferentes e escritos entre momentos anteriores ou posteriores a outros livros do autor: são ensaios, são prosas, ora quase fragmentos, ora quase aforismos. Mas trata-se de um livro de ação política, embora haja quem o define pronto quando o irracional ousa apresentar-se como racional. Mas o defino como um livro de ação política sim, mas sob a égide de uma ‘ontologia do gesto’, o que o articula uma ética no mundo das acepções com uma metafísica imbricada nas coisas. Destacam-se, pois: ‘O AUTOR COMO GESTO’ [em 22 de fevereiro de 1969, Michel Foucault proferiu sua conferência ‘O que é um autor?’, quando ele citou a formulação de Beckett ‘o que importa quem fala, alguém disse, o que importa quem fala?’] e ‘O DIA DO JUÍZO’ [a relação secreta entre o gesto e a fotografia, a foto pode mostrar um rosto, um objeto, um acontecimento qualquer, entretanto no Hades, as sombras dos mortos repetem ao infinito o mesmo gesto, a eterna repetição é aqui a chave secreta de uma infinita recapitulação de uma existência].

ELOGIO DA PROFANAÇÃO – mais uma vez, antes, o ‘capitalismo como religião’ é um dos fragmentos póstumos de Walter Benjamim, em que o capitalismo representa um fenômeno religioso parasitário a partir do cristianismo. Os profetas da modernidade conspiram ou são solidários, de algum modo, com a religião do desespero: o ethos que define Nietzsche, o homem é o super-homem, o primeiro homem que começa conscientemente a realizar a religião capitalista, assim como em Freud, o inferno do inconsciente paga os juros, e em Marx, os juros, como função da culpa, transforma-se imediatamente em socialismo. Walter Benjamim não se cansou, assim criou o conceito de ‘valor de exposição’. Acontece que o sonho capitalista da produção torna-se improfanável. Trata-se da pornografia, quando os pornostars, no momento em que executam suas carícias mais íntimas, olham resolutamente para a objetiva, mostrando maior interesse pelo espectador do que pelos seus partners: mesmo sabendo perfeitamente estar exposta ao olhar, não tem com eles sequer a mínima cumplicidade – não dar a ver nada mais que um dar a ver.

O SER ESPECIAL – a espécie de cada coisa é sua visibilidade, a sua inteligibilidade, mas especial é o ser que coincide com o fato de se tornar visível, com a própria revelação. O espelho é o lugar que descobrimos que temos uma imagem. A tal ponto que os filósofos medievais estavam fascinados pelos espelhos, interrogavam-lhes sobre a natureza das imagens que neles comparecem.

DESEJAR – é a coisa mais simples e humana que há. Não podemos trazer à linguagem nossos desejos porque imaginamos. O corpo dos desejos é uma imagem. E o que é inconfessável no desejo é a imagem que dele fizemos. PARÓDIA – o termo paródia apresenta-se na Ilha de Arturo, uma meditação de Elsa Morante, que se traduz sobre a busca de Arturo ao encontrar um significado de paródia como a imitação do verso de outrem, na qual o que em outro é sério passa a ser ridículo, cômico, grotesco. Essa acepção do termo paródia é moderna, o mundo clássico conheceu outra acepção ligada a técnica musical, que indicava a separação entre canto e palavra, entre melos e logos, já que na música grega, originalmente a melodia tinha que corresponder ao ritmo da palavra; quando tal nexo foi desfeito, na recitação dos poemas homéricos, esse modo particular de recitar provocava risadas nos atenienses. Uma caça: a ontologia é a relação entre linguagem e mundo, mas a paródia, como para-ontologia, expressa a impossibilidade da língua de alcançar a coisa, e da coisa de encontrar seu nome – o espaço é o da literatura, marcado pelo luto e pelo ‘gesto de escárnio’, como o da lógica é marcado pelo silêncio.

OS AJUDANTES – Kafka, em seus romances, depara com criaturas [crepusculares e incompletas] que se definem como ‘ajudantes’, entretanto incapazes de proporcionar ajuda: não entendem de nada, só aprontam bobagens e infantilidade, de tão semelhantes só se distinguem pelo nome, mas são observadores atentos, ágeis. Nelas há algo, um ‘gesto inconcluído’, uma agilidade aérea dos membros e das palavras, que testemunha seu pertencimento a um mundo complementar, que remete a uma cidadezinha perdida. Se a criança é um ser incompleto, a literatura infantil está cheia de ajudantes, pequenos ou grandes demais: gnomos, larvas, gênios, fadas, grilos, caracóis. Pinóquio é o exemplo perfeito de ajudante, o boneco que Gepeto fabricou para si a fim de fazer uma volta ao mundo com ele: nem morto nem vivo, metade golem metade robô. Entre as coisas também aparecem ajudantes, certos objetos inúteis que conservamos, metade lembrança metade talismã.

MAGIA E FELICIDADE – o nome secreto é o ‘gesto’ com o qual a criatura é restituída ao inexpresso, a magia é um gesto, como desvio em relação ao nome. A essência da magia ‘chama’, como ciência dos nomes secretos, isto é, cada coisa, cada ser, além de seu nome manifesto, possui um nome escondido, de todo modo, ser um mago significa conhecer e evocar esse arquinome. Magia significa que ninguém pode ser digno de felicidade, assim somente com a magia podemos alcançar a felicidade. A primeira experiência que a criança possui do mundo é a da incapacidade de magia dos adultos, não a de que eles são mais fortes, de acordo com Walter Benjamim. Só existe sobre a terra uma possibilidade de felicidade: crê no divino sem precisar alcançá-lo, no sentido do ‘não para nós’, ou seja, que a felicidade só nos cabe no ponto em que não estava destinada, não era para nós. As crianças sabem perfeitamente que, para serem felizes, precisam conquistar o apoio do gênio da garrafa, guardar em casa a galinha dos ovos de ouro.

GENIUS – sob uma etimologia transparente, visível na língua italiana entre genius [gênio] e generare [gerar]. Os latinos chamavam Genius ao deus a que todo homem é confiado sob tutela na hora do nascimento. A relação entre Genius e gerar é evidente para os latinos, pois o objeto genial por excelência sempre foi a cama, genialis lectus, afinal nela se realiza o ato da geração.

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