domingo, 27 de setembro de 2009

A Verdade e as Formas Jurídicas (Michel Foucault)


Composto por cinco conferências pronunciadas na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro entre 21 e 25 de maio de 1973, percebe-se neste livro a demonstração do vínculo entre os sistemas de verdade e as práticas sociais e políticas, a partir de suas intervenções e seus investimentos, onde se destaca a produção de verdade no Ocidente, a partir de uma hipótese ternária, em que ‘prova’ e ‘inquérito’ projetam-se nas ciências naturais e o ‘exame’ imbrica-se nas ciências humanas. Resultado de um amplo questionamento que gira em torno de como se puderam formar domínios de saber a partir de práticas sociais? O que acaba desnudando uma história do próprio sujeito de conhecimento, na relação entre sujeito e objeto, a própria verdade possui uma história.

Para essa empresa realizar-se, destaca-se, primeiramente, que as ciências humanas, no século XIX, ‘saber do homem’ que se origina de práticas de controle e vigilância, ou seja, saber que criou um novo sujeito de conhecimento, ou seja, não se trata de pensar a partir de um sujeito (formas de conhecimento) dado previamente e definitivamente. Em seguida, ressalta-se um primeiro eixo que recobre os ‘domínios históricos de saber’ em relação com as práticas sociais, para poder excluir a concepção de um sujeito dado previamente; um segundo eixo como jogo estratégico, a ‘análise de discurso’, para considerar fatos de discurso numa trama estratégica (jogo de ação e reação, dominação e esquiva, de lutas) que reconhece, num nível, um conjunto regular de fatos lingüísticos, noutro, polêmico e estratégico; e, um terceiro eixo como reformulação da teoria do sujeito, ou seja, com o objetivo de constituir um sujeito no interior da história e em cada momento refundado nela, não dado definitivamente.

Para tanto, compreende-se a possibilidade de uma história da constituição de um sujeito através de discursos tomados como conjunto estratégico de práticas sociais, dentre as quais, destacam-se as práticas jurídicas. Especificam-se, entretanto duas histórias da verdade: interna – história da verdade por meio da história das ciências, onde há correção através de princípios de regulação; externa – a verdade se forma em vários lugares onde regras estratégicas são definidas. A forma judiciária é vista sob o modo em que a sociedade pôde definir tipos de subjetividade ou formas de saber, que põem o homem e a verdade em relações, assim as práticas judiciárias tornou-se o modo pelo qual os homens puderam ser julgados. Destacam-se duas formas de verdades, o inquérito (séc. XV-XVIII) e o exame (séc. XIX): 1] o Inquérito é uma forma característica da verdade praticada principalmente por filósofos, mas também por geógrafos, botânicos, zoólogos e economistas. Com efeito, foi no meado da Idade Média que o inquérito surgiu como forma de pesquisa da verdade no interior da ordem jurídica, com o objetivo de saber quem fez o quê [?], em que condições e em que momento, o Ocidente elaborou complexas técnicas de inquérito que foram utilizadas, mais tarde, tanto na ordem filosófica quanto na ordem científica; 2] o exame compreende formas de análises que originaram a sociologia, a psicologia, criminologia, a psicopatologia, a psicanálise, mas a sua origem remonta a certas práticas de controle político e social.

Discorre-se uma trajetória nesse fragmento da história dos sistemas de pensamento. Primeiramente, na medida mesmo em que, desde o episódio curioso de Édipo, torna-se um ponto marcante, em geral, na história do próprio saber e, em especial, do inquérito: não resta dúvida que o que está em questão em Édipo é o saber e o não-saber (resolver o enigma da esfinge e consultar o oráculo de Delfos), que resume a história do direito grego entre a testemunha (Políbio, por exemplo), o direito do povo (destituição da realeza) e a prova como demonstração do inquérito (a perda do poder para Creonte é a prova derradeira de que Édipo não era rei). Segundo, descola-se para Idade Média, quando a concepção da ‘prova’ está intimamente ligada à efetuação do ‘inquérito’. Terceiro, o exame relacionado à formação social do século XIX, como um dos meios de estabilização da sociedade capitalista. Em quarto lugar, enfim, sobre as reflexões metodológicas, cita-se Nietzsche, sob um discurso que se faz uma análise histórica da própria formação do sujeito, mas sem jamais admitir a preexistência de um sujeito de conhecimento. Deste modo, reprovando as análises sobre religião de Schopenhauer, Nietzsche condenou-lhe por cometer o erro de procurar a origem [Ursprung] da religião num sentimento metafísico que estaria presente em todos os homens. Nietzsche afirmava que, em um determinado lugar e em um determinado ponto do tempo, animais inteligentes inventaram o conhecimento. Invenção [Erfindung], uma ruptura e um pequeno ponto de pequeno começo, isto, percebem-se duas rupturas de Nietzsche, a ruptura entre o conhecimento e as coisas a ser conhecidas, e a ruptura do conhecimento e dos instintos, por relações de poder e dominação. Afinal, rir, deplorar e detestar revela que são os instintos que nos colocam em posição de ódio e de desprezo ao objeto ou coisas ameaçadoras a ser conhecidas. Somente nas relações de poder, portanto, no modo em que nas coisas e nos homens entre si (a partir das lutas que procuram dominar uns aos outros) é que nós podemos compreender o conhecimento. Enfim, por trás de um campo de forças, resta a invenção [Erfindung], que para Nietzsche restabelece o conhecimento, como algo que foi inventado, não tem origem.

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