sábado, 13 de fevereiro de 2010

A Visão em Paralaxe (Slavoj Zizek) - I

A filosofia surge nos interstícios de comunidades diferentes, como se houvesse um espaço frágil de troca e de circulação entre elas, espaço onde falta qualquer espécie de identidade positiva. Se não fosse da ‘dúvida fundamental’ de Descartes exatamente a experiência multicultural de que a nossa própria tradição ocidental não é melhor que a tradição cultural dos outros, tida como excêntrica. Parece que a luta dos contrários, que rege o materialismo dialético, foi colonizada ou ofuscada pela noção de polaridade dos contrários disseminada pela Nova Era – neste caso, o primeiro passo dado foi o de substituir essa questão da polari-dade dos opostos pelo conceito de ‘tensão’, lacuna, não-coincidência inerente ao próprio Um. Este livro não deixa de se basear na estratégia político-filosófica de chamar essa ‘lacuna’ ou ‘tensão’, que visa a separar o Um, pela palavra ‘paralaxe’. Deste modo, o materialismo será forçado a perceber uma ‘torção reflexiva’, por meio da qual eu mesmo me incluirei em toda imagem constituída por mim: neste caso, trata-se do materialismo desde que isso signifique que a realidade que vejo, nunca será ‘inteira’, porque ela sempre vai conter uma mancha, um ponto obscuro, que indicará minha presença, minha inclusão nela.

A mudança é puramente paraláctica, ou seja, trata-se menos de uma mudança do objeto do que uma mu-dança de nossa atitude perante o objeto visto. Ressaltam-se dois tipos de objetos: o ‘hitchcockiano’ e o ‘Odradek’, pois: (1) Como uma materialização de um investimento libidinal intersubjetivo, como se fosse para os olhos de alguém que a observação o fez olhar, ou seja, isso apresenta um objeto diretamente como transmissão de uma tensão intersubjetiva, já que tal objeto nunca é possuído nem manipulado – o próprio objeto (hitchcockiano) que determina o que nós somos. Assim sua posse nos afeta de maneira incontrolável. Transfere então a ênfase das pessoas para o objeto, de tal forma que a troca dos olhares dá-se primei-ramente, só depois, a câmera se aproxima lentamente para o objeto, ponto central da cena: para criar o suspense proto-hitchcockiano, o objeto – ponto central da cena, ponto focal libidinal – só é citado no fim, sua menção é quanto mais retardada; (2) Descreve-se uma das realizações mais fundamentais de F. Kafka – o ‘Odradek’: à primeira vista, um carretel de linha chato e em forma de estrela, ou melhor, pedaços velhos de linha (amarrados, enovelados) de vários tipos e cores. Uma pequenina cruz de madeira se projeta do meio da estrela e outra varinha se une a ela em ângulo reto. Nessa última varinha, de um lado, e de uma das pontas da estrela, de outro, a coisa consegue ficar de pé, como se realmente tivesse duas pernas. O Odradek é muito hábil e raramente se consegue apanhá-lo, com frequência ele se esconde nos corredores, nos armários, nas escadas, mas ninguém o vê: o Odradek é, portanto, um objeto transgeracional (livre dos ciclos da geração), imortal, fora da finitude, fora do tempo, que não demonstra nenhuma atitude ligada a metas, propósitos, utilidades, mas induz à ideia que sobreviverá a nós.

Retirados do universo cinematográfico, o ‘objeto hitchcockiano’, de um lado, e o ‘Odradek’, do universo literário, de outro, não deixam de ser assinalados em termos éticos e estéticos por S. Zizek como signifi-cantes. Uma série de filmes é disposta para compor o imaginário das significações que alguns conceitos são levados a obter através da ótica estética de S. Zizek: a) A cena de Coração Selvagem, de David Lynch, quando Willem Dafoe pressiona Laura Dern num quarto solitário e escuro a repetir: “Fala ‘me fode’!” – a extorsão da palavra que assinalaria o consentimento para o ato sexual. Quando ela concorda e repete a frase desejada, ele dá um sorriso simpático e diz que hoje não poderia, porque estava com pouco tempo, precisava ir... Trata-se de um ‘estupro em fantasia’? Uma recusa da realidade que humilha a vítima ainda mais, sob uma fantasia que é estimulada e abandonada num mesmo gesto? b) Nos dois últimos filmes do cineasta Andrei Tarkovski, Nostalgia e O sacrifício, o ato de sacrifício sem sentido são profundamente kier-kegaardianos, ato puro e insensato que restaura o sentido de nossa vida terrena; c) Galante e Sanguinário, um filme de Delmer Daves, clássico tema de faroeste, em que o Ato mais importante não é realizado pelo personagem central, mas sim sobre um personagem coadjuvante, que recai a o foco da provação ética. Conta-se a história de um fazendeiro pobre (Van Heflin), que por 200 dólares aceita escoltar um bandido (Glenn Ford) com a cabeça a prêmio do hotel, onde está, até o trem, que desembarcará na prisão. O fazen-deiro precisa desse dinheiro para salvar seu gado da seca, tanto que durante todo o filme, a pessoa que parece ser posta a prova (ética) é o próprio fazendeiro. No entanto, na última cena toda a percepção do filme muda: perto do trem, prestes a sair da estação, o bandido e o fazendeiro se veem frente a frente com a gangue, que aguarda o momento certo para atirar no fazendeiro e libertar seu chefe: quando a situação parece desesperada para o fazendeiro, o bandido de repente diz: ‘Confie em mim! Vamos pular juntos do vagão!” Em resumo, quem foi posto em provação ética acabou sendo o bandido e não o fazendeiro como se esperava; d) uma das cenas de Matrix que se destaca é a que Nero tem escolher entre a pílula azul (Prazer, a persistência na ilusão regulada pela Matrix) e a vermelha (Verdade, o despertar traumático no Real): ele escolhe a vermelha, ao contrário do informante da Matrix infiltrado entre os rebeldes que, em um cena de diálogo com Smith (agente da Matrix), pega um pedaço de carne com seu garfo e diz: ‘sei que é apenas uma ilusão virtual, mas não me importo, porque o gosto é real’ – assim ele segue o princípio da ilusão, onde é preferível permanecer na ilusão mesmo sabendo que é só uma ilusão. Em vez de sermos escravizados pela Matrix, podemos nos libertar? Tanto aprendendo com suas regras como mudando as regras do nosso universo físico? No entanto a escolha não se dá apenas entre a verdade amarga e a ilusão prazerosa, mas antes a dois modos de ilusão: o traidor está preso à ilusão de nossa ‘realidade’, dominada e manipulada pela Matrix.

Trata-se sempre do “gesto ético” elementar que é um gesto negativo: trata-se de estratégias que visem a bloquear a nossa tendência direta. Seja por uma ‘intuição hegeliana’ de Benjamin Libet – de como o ato elementar de liberdade, a manifestação do livre-arbítrio é dizer não, isto é, interromper a execução de uma decisão – assim, a liberdade não é ‘fazer que se quer’, mas ‘fazer o que não se quer’ frustrar a realização espontânea de um ímpeto. Seja quando Daniel Wegner, de modo bem kantiano, afirma que ‘uma ação voluntária é algo que a pessoa pode fazer quando lhe pedem’, a implicação é precisamente que obedecemos a uma ordem que vai contra a nossa tendência espontânea.

Certa ‘substantivação psicológica’, vista por Seymour Chatman, desvela uma das características de Henry James, através do impacto da história sobre as esferas mais íntimas da experiência, até porque as ideias e percepções são mais entidades que ações, mais coisas que movimentos: de tal modo que as abstrações psicológicas adquirem vida própria – são os verdadeiros agentes, aqueles que interagem. Talvez seja por isso que um capítulo deste livro tenha sido intitulo: A Escolha de Kate, ou o materialismo de Henry James. Materialismo percebido quando o sujeito torna-se uma espécie de recipiente vazio – um espaço no qual pode se localizar as coisas. A própria substantivação de verbos e predicados operada por H. James, sua transformação em agentes substantivos, é que dessubstancializa o sujeito, reduzindo-o a um espaço vazio formal no qual interage a multiplicidade de agentes. Trata-se, pois de reler As asas da pomba como a his-tória de como Milly, depois de saber da trapaça da qual se tornou alvo, não sabotou nem se vingou quando o ato se consumou, levando a história até o final. O romance de H. James consuma-se quando um co-nhecimento indesejado é imposto às pessoas, questiona-se: como esse conhecimento afetará seus atos? O que fará Milly quando souber que Densher e Kate estão ligados? Quando souber da tramóia de Densher ao demonstrar amor por ela? Como Densher vai reagir quando souber que Milly conhece o seu plano com Kate? A questão está ligada a Milly, então, ao saber da tramóia, ela reagirá com um gesto de sacrifício e deixa a sua fortuna para Densher? O ‘oferecimento de Milly’, não deixa de ser um oferecimento feito para ser negado. Ao oferecer-lhe uma riqueza da mais profunda bondade ou aceita e será marcado por uma mancha indelével de culpa e corrupção moral, ou se fizer o que é certo e rejeitá-la, você também não estará sendo íntegro – sua própria rejeição servirá como reconhecimento de sua culpa. Acontece que o objetivo de Milly é destruir a ligação entre Dansher e Kate: ao assumir e encenar livremente a própria morte como sacrifico de autodestruição que deveria permitir, junto com a herança, que Densher e Kate vivessem felizes para sempre. Este gesto de Milly acabava arruinando a própria possibilidade de eles serem felizes. Ocorre que se Milly deixar sua fortuna para eles, ao mesmo tempo, torna-se eticamente impossível para eles acei-tarem esse presente.

O ‘Deus de Kierkegaard’ deve ser compreendido como um ponto extremo do idealismo. O ‘Deus de Kierke-gaard’ está correlacionado à nossa relação com a realidade, como inacabada, em ‘devir’. Assim, Deus será o nome do Outro Absoluto contra o qual podemos medir a total contingência da realidade – como tal, ele não pode ser concebido como nenhum tipo de Substância, como Coisa Suprema. Se não há medida em comum entre a nossa vida e o divino, uma ‘renúncia sacrificatória’ não poderia fazer parte de uma troca com Deus, assim sacrificamos tudo (tudo em nossa vida, a sua totalidade) por nada. Acontece que se exige do homem algo que seja o maior sacrifício possível ou um exercício que se dedique por toda a sua vida como sacrifício, mas se caso lhe perguntarem: ‘Sacrifício para quê?’ Não haverá ‘para quê’? Nada vai garantir que nosso sacrifício será recompensado ou que daremos um sentido real à nossa vida. Trata-se de um ‘salto de fé’: para o observador externo só pode parecer um ato de loucura. Então, depois de sacrificar tudo (minha felicidade, honra, riqueza) pela Causa, de repente percebe-se que se perdeu a própria Causa – a alienação é, portanto, redobrada, ‘refletida em-si’. Quando se sacrifica tudo pela Causa, acaba-se perdendo (traindo) a própria Causa, quando se aliena sem restrições ao Simbólico, acaba-se sendo reduzido a uma mancha excrementicial desse Simbólico produzido.

Um comentário:

Frederico Fonseca Soares disse...

devo dividir com você a angustia dos pensamentos pós-modernos, mas Zizek é fruto de uma contradição, Lacan e o Marxismo. Como Freud mesmo disse: a Psicanálise e o comunismo não combinam. Porém a união dessas dicotomias é uma lupa para o futuro de devires e incertezas capitalistas, também concordando com Zizek de que o capitalismo é invencível