sábado, 13 de fevereiro de 2010

A Visão em Paralaxe (Slavoj Zizek) - II

Antes de sua morte, como Mestre vivo, Cristo tornou-se excessivamente ‘universal’, transmitindo uma mensagem universal (de amor etc.) e ‘exemplificando-a’ com seu comportamento e seus atos. Somente com sua morte na cruz que Cristo, de apenas mensageiro divino, tornou-se diretamente Deus, ou seja, quando se fechou a lacuna entre o conteúdo universal e sua representação. Assim, de volta aos grandes Mestres, como Buda: os budistas não revelam sua verdade no sentido cristão estrito apenas exemplificam (com sua vida modelar) o ensinamento universal que disseminam – Buda era budista e até um budista exemplar, na medida em que Cristo não era cristão, ele era o próprio Cristo em sua absoluta singularidade. Resta que ‘o maior ensinamento ou lição’ de Cristo tenha sido cindir, de imediato, a sua própria existência como indi-víduo que é, simultaneamente, homem e Deus. Superposição direta, pois, do Universal e do Singular: Cristo, o próprio Deus, criador de todo o nosso universo, caminhava por aí como um indivíduo comum. Como conciliar, no entanto, a existência de um Deus bom e onipresente com o terrível sofrimento de milhões de inocentes? De que modo conciliar, então, a existência de Deus com um mal extremo semelhante a shoah? O paradoxo da shoah consiste no seguinte desafio: ‘se existe Deus e se ele é bom, como pôde permitir que tamanho horror acontecesse?

É necessário um líder para deflagrar o entusiasmo pela Causa, para provocar a mudança radica da posição subjetiva de seus seguidores, para ‘transubstanciar’ sua identidade. Apesar do poder quase absoluto que gozavam, os governantes passavam por atribulações éticas e ideológicas o que os levavam a viver num estado permanente de guerra contra os próprios súditos e numa posição que parecia ilegal e obscena. Se-guem-se alguns exemplos militares sobre esse avesso obsceno do poder, a partir das questões sobre o roubo, a homofobia e a tortura (sobre o caso Abu Ghraib no Iraque):

(1) durante um treinamento militar, adolescentes recebiam comida insuficiente, de propósito, para que tivessem que roubá-la; mas se fossem pegos seriam severamente punidos – não por terem roubado, mas por terem sido pegos, sendo forçados a aprender a arte de roubar em segredo, a cometer um ato clandestino de transgressão;

(2) os soldados identificados como homossexuais são isolados e surrados diariamente, mas essa homofobia explícita é acompanhada por uma rede implícita excessiva de insinuações homossexuais, piadas de caserna, práticas obscenas, etc. Assim, a intervenção militar da homofobia não só se concentra na repres-são explícita da homossexualidade, mas perturba as práticas homossexuais implícitas, antes, move esse ‘subterrâneo’, transformando-o;

(3) As torturas de Abu Ghraib não deixavam de se situar como certo tipo de ‘práticas subterrâneas’, ou seja, quando o Poder gera o seu próprio excesso e precisa aniquilar na mesma operação que deve imitar aquilo que combate. Assim, entra-se no domínio das operações secretas – daquilo que o Poder faz sem admitir, a propósito de Abu Ghraib. O comando do Exército dos Estados Unidos impõe uma garantia ‘ridícula’ de que não foi dada nenhuma ‘ordem direta’ para humilhar e torturar os prisioneiros. Não foi assim que as coisas foram feitas: não havia nenhum tipo de ‘ordem formal’, nada era por escrito, assim havia apenas uma ‘pressão não oficial’ (sugestões e diretivas) dada em particular, como se transmitisse um segredo sórdido;

(4) sobre a explosão do escândalo Abu Ghraib: a Cruz Vermelha Internacional bombardeou o comando do Exército norte-americano no Iraque, a partir de relatórios que constavam abusos em suas prisões militares, no entanto, esses relatórios foram ignorados. As autoridades não desconheciam os acontecimentos, somente admitiriam os crimes caso tivessem que enfrentar suas divulgações na mídia. Tanto que uma das medidas de prevenção foi proibir os militares norte-americanos de portar câmeras digitais e telefones celu-lares com vídeo, principalmente para que a circulação pública fosse evitada e não para impedir os seus atos. Destaca-se um contraste entre o ‘modo padrão’ de tortura sob o governo de Saddam e entre os norte-americanos: no regime de Saddam tratava-se de infligir a dor de maneira direta e violenta, enquanto os norte-americanos focavam-se em humilhações psicológicas, além disso, gravar a humilhação com uma câmera, incluindo os responsáveis pelas imagens (fazia parte do processo a dupla série de rostos sorrindo ao lado de corpos nus e contorcidos dos prisioneiros), em flagrante contraste com os sigilos das torturas de Saddam. Acontece que quando os norte-americanos obtinham as fotos dos prisioneiros iraquianos hu-milhados (nas telas e nas primeiras páginas dos jornais), a noção de direita dos ‘valores norte-americanos’ é que era exibida – o próprio deleite obsceno que sustenta o modo de vida dos norte-americanos. Tratava-se, portanto de um ‘choque’ entre a tortura violenta e anônima e a tortura como espetáculo midiático em que os corpos das vítimas serviam de pano de fundo anônimo para o ‘rosto americano inocente’ de sorriso estúpido dos próprios torturadores.

Identifica-se uma torção auto-reflexiva pelos carrascos nazistas para suportar os atos horrendos que co-metiam. É que a maioria desses carrascos se defendia mesmo sabendo que faziam coisas terríveis, como humilhações, sofrimentos e mortes às vítimas. O modo que se lidava com isso ficou conhecido como o ‘truque de Himmler’: “ao invés de (os torturadores) dizerem que coisas horríveis eu fiz com as pessoas”, deste modo os carrascos nazistas poderiam dizer – “Que coisas horríveis eu tive de ver na execução dos meus deveres, como essa tarefa pesa em meus ombros”. Truque de Himmler, ou seja, o deslocamento da culpa, onde o torturador absolve seus atos violentos na medida em que penaliza a sua obediência a uma ordem, o cumprimento de seu dever.

Considera-se que a constituição do Estado de Israel foi, do ponto de vista da Europa, a ‘solução final’ que se realizou sobre o problema dos judeus – o ‘livrar-se dos judeus’, alimentado pelos próprios nazistas. Em 26 de setembro de 1937, Adolf Eichmann e seu assistente embarcaram em Berlim num trem para visitar a Palestina: visitar Tel-Aviv com o intuito de coordenar organizações alemãs e judias para facilitar a imigra-ção dos judeus para a Palestina. Este foi o momento na II Guerra em que os alemães e os sionistas queriam que o máximo de judeus fosse para a Palestina: os alemães os queriam fora da Europa ocidental, enquanto os judeus queriam superar a quantidade de árabes na Palestina. Enfim, os nazistas e os judeus não deixaram de manter alguns interesses em comum.

Se o Poder estatal apenas representa os interesses de seus sujeitos, no nível da lei, o Estado serve a eles e está sujeito ao seu controle. No nível da responsabilidade da ‘mensagem pública’ parece haver uma com-plementaridade com uma ‘mensagem obscena’ (do exercício incondicional do Poder): ‘as leis na verdade não me restringem, não posso fazer com vocês o que eu quiser em absoluto, mas posso tratá-los como culpados se assim decidir... Posso destruí-los se assim quiser’. Excesso obsceno constituinte necessário da noção de soberania – aqui, a lei mantém sua autoridade se caso os súditos ouvirem nela o eco da auto-afirmação incondicional obscena. Com efeito, H. Arendt enfatizou a distinção entre o ‘poder político’ e o ‘mero exercício da violência’ (social): a distinção entre a Lei simbólica pública e seu complemento obsceno implica afirmar que não existe Poder sem violência – o Poder sempre tem de se basear numa mancha obscena de violência. Deste modo, não só a violência é o complemento necessário do poder (político), já que está sempre na raiz de toda relação de violência aparentemente ‘não política’.

Enfatizam-se três tipos de violência: a) Há passages à l’acte violentas que apenas comprovam a impotência do agente; b) há uma violência cuja verdadeira meta é garantir que nada mude realmente; c) o ato violento que muda de fato as coordenadas básicas de uma constelação – a partir do qual o gesto de subtração do “Preferiria não” de Bartleby (incapaz de fazer mal a uma própria mosca, cuja presença o tornaria mais insu-portável), sob o princípio que sustenta todo o movimento e o trabalho subsequente de construção que lhe dá corpo.

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